segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

matemúsica




No meu post introdutório, citei as minhas duas maiores paixões: a matemática e a música. Pensar em alguma interrelação entre áreas, a princípio tão díspares, não é algo tão imediato, de fato. A matemática, rainha de todas as ciências e o supra-sumo da razão humana, poderia ter algo em comum com a liberdade da expressão musical, algo tão desprovido de razão? A verdade é que elas são mais íntimas do que vocês talvez possam imaginar. E isso desde longa data.

Voltemos à Grécia Antiga, a terra de onde o pensamento crítico, nas mais diversas áreas, finalmente emergiu no mundo ocidental. Reza a lenda que o notável matemático Pitágoras de Samos - esse mesmo que você imaginou, aquele do triângulo - passava em frente a uma ferraria. Ouvia o ferreiro martelando em uma barra, e percebeu que, conforme ele batia em diferentes pontos, a barra emitia sons diferentes. Pitágoras, então, criou a primeira escala musical que se tem registro. Ao dividir uma corda em diferentes proporções, Pitágoras concluiu que algumas frações específicas emitiam sons particulares, aos quais ele denominou "harmônicos". Assim, uma corda inteira produziria um dado som harmônico, denominado fundamental (o harmônico fundamental poderia ser mais grave ou mais agudo, dependendo da extensão da corda); dividindo-se a corda na metade, obtém-se o segundo harmônico, equivalente a uma oitava acima, segundo a notação atual, em relação ao harmônico fundamental. No terceiro harmônico, a corda era reduzida a um terço para se encontrar o terceiro harmônico; depois, em um quinto de corda encontra-se o quarto harmônico; reduzindo a um sétimo da corda, o quinto harmônico; e assim sucessivamente. Intervalos de corda não dispostos entre os harmônicos, denominados não-harmônicos, produziam sons intermediários, "desagradáveis", segundo Pitágoras. Os estudos de Pitágoras evoluiriam em diferentes civilizações do mundo antigo e se tornariam a família de escalas chamadas pentatônicas.

Muitos anos depois, já nos séculos XVII e XVIII, surgiu aquele que, para muitos, configura-se como o compositor mais notável de toda a história: Johann Sebastian Bach. O autor de obras magistrais como a Toccata and Fugue em Ré Menor, A Paixão segundo São Mateus e as variações Goldberg era, ironicamente (ou não), um excelente matemático. Apesar de sua biografia ser um tanto controversa neste ponto, dizia-se que Bach compunha segundo critérios matemáticos muitíssimo rigorosos. Notavelmente, a tão conhecida arte da fuga traz o conceito de simetria à música; costuma-se dizer que as fugas de Bach são as composições mais "matemáticas" feitas em toda a história.

É interessante salientar também que Bach usava uma escala musical que trazia sutis diferenças com relação à escala inventada por Pitágoras na Antiguidade Clássica, que ele usava puramente por sua beleza, sem nenhum atributo matemático. O que é mais interessante é que a escala musical de Bach não era algo meramente empírico, afinal: contemporâneo ao compositor era o matemático suíço Jakob Bernoulli. (Jakob, junto com seu irmão Johann Bernoulli, foram os primeiros matemáticos da família Bernoulli, com grande tradição na ciência - Bach, ironicamente, também foi o primeiro compositor notável do clã dos Bach, que manteve a tradição musical durante séculos.) Jakob Bernoulli propôs-se a estudar uma família de curvas, chamadas espirais logarítmicas (e que ele próprio denominou spira mirabilis, a espiral maravilhosa), uma curva em espiral que seguia uma constante, chamada "e" ou constante de Euler (em homenagem ao matemático suíço Leonhard Euler, o mais notável dos alunos de Johann). Foi verificado posteriormente que a espiral crescia em razões de uma outra constante matemática famosa, chamada φ (ou fi) (vide o post sobre a proporção áurea).
A espiral logarítmica de Bernoulli e seu paralelo

com a escala cromática, de Bach.

"Mas então, que raios a spira mirabilis de Bernoulli tem a ver com a obra de Bach?", vocês podem se perguntar. Acontece que Bach verificou que a escala pentatônica tinha algumas incoerências, dentro de sua perspectiva musical, e decidiu criar sua própria escala, batizada escala cromática, composta de 12 tons - na verdade, os sete tons da escala diatônica acrescidos de cinco tons intermediários. Em seu livro "e: A História de um Número", Eli Maor imagina um encontro fictício entre Johann Bernoulli e Bach em Leipzig, onde Bach viveu seus anos finais. Após o músico apresentar-lhe sua nova invenção, Bernoulli cita a notável contribuição matemática de seu irmão, relacionando a escala cromática com a espiral logarítmica de Jakob. A escala cromática descreveria uma espiral logarítmica, em que cada tom estivesse a uma distância de π/6 uns dos outros. O período dessa espiral estaria fora de fase, a uma razão de φ unidades (veja imagem ao lado).

Platão e seus seguidores costumavam dizer que, se deus não era um grande matemático, a própria matemática era o deus que dá a beleza ao universo. Conceitos a princípio abstratos, como as diferentes simetrias, o fácil encontro de algumas constantes matemáticas em todo o universo e mesmo todo o caráter esotérico que envolve a matemática, a priori, podem deixar tal impressão. E, de fato, a matemática rege boa parte dos comportamentos aleatórios que vemos pelo cosmos. Com a música não é diferente; como Pitágoras, Bach e Bernoulli demonstraram, ao longo dos séculos, há muito mais que puramente arte na música - há também uma beleza intrinsecamente racional. Talvez seja a mescla entre a criatividade da música e a rigidez matemática que torne a arte musical algo tão belo. Ou, talvez, a própria matemática seja uma arte.