sábado, 16 de julho de 2011

capítulo 3: a ultrapassagem interestelar







Imagine-se num pub inglês dos anos 60, rodeado de gente, letreiros em neon, cerveja e alguma banda de moleques ao fundo. Este é um bom ponto de partida para o tipo de ambiente onde se desenvolveram o psicodelismo e, em maior grau, o rock progressivo. Se você levar em consideração que três invenções – rádio, televisão e guitarra elétrica – ainda soavam como novidades para a sociedade de então, pode deduzir a regra de ouro da produção musical de então: extrapolar os sentidos com imagem e som. No caso do psicodelismo, os elementos sonoros e visuais visam intimidar o ouvinte e fazê-lo tornar a si mesmo em sensações como loucura, melancolia, obsessão, alucinação, encantamento e dúvida. Ao passo em que os músicos experimentavam novas sonoridades, também a técnica evoluía, foram eles os primeiros usuários de muitos aparatos que hoje consideramos triviais. Impressiona como aquela geração extraiu de cada novo sintetizador lançado uma nova sonoridade, tudo era extremamente valorizado e digno de ser testado.

E toda aquela revolução começou no pátio da Regent Street Polytechnic, em Cambridge, Inglaterra. Roger Keith 'Syd' Barrett, Richard William 'Rick' Wright, George Roger Waters, Nicholas Berkeley Mason e Bob Klose juntaram-se em 1964 para fazer um som psicodélico, baseado em distorções de sintetizadores, equalizações desiguais das saídas de áudio e, principalmente, muitas alucinações que Barrett, o principal compositor, tinha em seu uso de substâncias psicotrópicas, em particular o LSD. Klose, que queria uma sonoridade mais calcada no jazz, saiu pouco tempo depois de ter gravado uma demo, seu único registro na banda. Nascera ali o quarteto que revolucionaria a música, dando ao rock um design totalmente inovador: o Tea Set, que depois mudou o nome para The Pink Floyd Sound até, finalmente, chegar em Pink Floyd - uma homenagem de Barrett a dois blues man, Pink Anderson e Floyd Council. Assim, Syd Barrett (guitarrista e vocalista) assumira a posição de frontman e principal compositor, enquanto Roger Waters assumiu o baixo e os backing vocals, Rick Wright, o teclado e backing vocals e Nick Mason, a bateria. Fizeram sua fama entre 1965 e 1966 nos bares ingleses, em particular no Marquee Club, que já era o principal ponto de encontro dos roqueiros londrinos.

Capa do disco Dark Side of the Moon
(1973), do Pink Floyd
Sua sonoridade era tão impressionante que conseguiu arrebatar até os já renomados Beatles, sendo uma fortíssima inspiração para o Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, isco esse que saiu paralelamente ao debut do Floyd, em 1967. The Piper at the Gates of Dawn foi gravado em uma das salas dos estúdios Abbey Road, ao lado dos Beatles, que gravavam o Sgt. Peppers. As bandas conversavam entre si nos corredores do estúdio, o que, e certa forma, teve uma influência recíproca entre eles. Não seria exagero nenhum taxar os discos de irmãos por tais características comuns, sendo ambos o pontapé inicial da corrente psicodélica que estava por vir.

Com a revolução proposta pelo Pink Floyd e catapultada às rádios pelos Beatles, não demorou a surgirem bandas que despontassem no cenário psicodélico, como Beach Boys, The Byrds, The Temptations, Moody Blues, Procol Harum, Jethro Tull e Focus, entre outras. Três trabalhos merecem destaque pela sua nítida ligação com a sofisticação da música clássica e do jazz: Procol Harum, que ornamentava suas canções com instrumentação erudita e sons de órgão, dando uma sensação de grandiosidade e lirismo; Beach Boys, autor de Little Deuce Coupe, o primeiro álbum conceitual da história que narrava em 12 faixas a cultura automobilística estadunidense; e Focus, com seu Focus III, que fazia referência à arte da fuga de Bach e à ópera de Verdi, entre outras influências. No fim dos anos 60 e início dos 70, algumas versões alternativas de Bach, Vivaldi, Rossini, Dvorak, Stravinsky e outros compositores clássicos tinham sido gravadas, geralmente com distorções sonoras, alterações na fórmula de compasso e improvisações em determinados trechos. Diferentemente do movimento neoclássico que surgiria décadas depois, os psicodélicos faziam uma releitura mais franca do passado na posição de intérpretes, sem partirem para a cópia e cola descarada de escalas, arpejos e temas de séculos atrás.

Algumas bandas já consagradas em outros estilos tiveram que se render ao apelo crescente de público e crítica por esse tipo de som, como fizeram os já citados The Beatles em seu genial Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club. Ora, estamos falando de psicodelismo ou rock progressivo? Muito provavelmente estamos falando das duas coisas porque é difícil destacar o momento exato em que este derivou daquele. A teoria corrente diz que o termo “rock progressivo” surgiu quando jornais da época não souberam definir que som fazia um tal de King Crimson, num show de abertura para os Rolling Stones no Hyde Park (1969), dando este nome ao que milhares de pessoas ouviram naquele festival. Se misturarmos a inteligência e complexidade da música clássica, o requinte e liberdade do jazz, um pouco da improvisação e virtuosismo do blues, a temática quase alucinógeno-lisérgica do movimento psicodélico e muito de rebeldia e contestação, teremos a combinação que fez efervescer o rock progressivo. A grande diferença do rock progressivo em relação a seus predecessores (sem pleonasmos) é que ele nasceu para ser rock’n roll. Ali sobrava técnica, mas o foco estava na atitude. Algumas bandas e músicos nasceram no rock progressivo e outros migraram do psicodelismo, dentre as quais Yes, Genesis, Jethro Tull, King Crimson, Led Zeppelin, Renaissance, Bob Dylan e Jimi Hendrix.

A cena underground de rock progressivo brigava bastante contra uma série de dogmas, segundo os quais esse tipo de música só poderia ser feita por gente altamente especializada em música e que dispusesse de instrumentação caríssima para aquela época. Era frequente um esforço conjunto para que equipamentos de distorção fossem adquiridos em conjunto e compartilhados em sessões cronometradas, a fim de que muitos pudessem experimentar fazer música própria em diversos sons e texturas. Existia uma preocupação quase obrigatória não apenas em produzir e lançar trabalhos, mas voltar a atenção para o processo criativo e aprender com ele. Os resultados quase sempre eram primorosos e apresentados em estúdios repletos de aparelhagem grosseira, então evoluíam para sons mais bem estruturados e já estavam prontos para serem tocados em qualquer lugar. Essa dinâmica aparentemente inocente da produção de música psicodélica e rock progressivo foi se especializando ao ponto em que empresários frequentavam essas brainstorming sessions em busca de talentos genuínos. Era tão fácil beber da fonte do rock progressivo e replicar, com algum investimento, suas principais ideias criativas que muitas bandas novas mal saíram do primeiro álbum, sob alegação de mero continuísmo do que haviam feito Pink Floyd, Yes e Genesis.

Se, por um lado, era fácil compreender o que se passava nas mentes progressivas, por outro lado a alta exigência técnica ainda limitava o nascimento de muitas bandas de garagem do estilo. Afinal de contas, três ou quatro acordes não bastavam para se compor na lógica progressiva, era preciso estudar tanto quanto um músico erudito e encarar corajosamente um mercado com dinossauros consolidados e a pleno vapor. Três cenas regionais se destacaram nesta época: a inglesa, onde tudo começou e cujo som privilegiava a melopeia e o ar sinfônico; a italiana, que legou a seu modo grandes bandas como Le Orme, Semiramis, Premiata Forneria Marconi, Semirami e Banco del Mutuo Soccorso, geralmente calcadas nos compositores italianos e numa música mais dramática e virtuose, oposta à inglesa; a alemã que conseguiu produzir uma sonoridade muito racionalizada e voltada para a economia de motivos, também legando bandas de excelente nível como Amon Düül (I & II), Krokodil, Can, Birth Control, Ash Ra Tempel, Berluc e as de veia eletrônica Tangerine Dream, Neu! e Kraftwerk. No Brasil, a tradição do gênero passa por grupos extravagantes, de crítica social apurada, discursos absurdos e folclore. O cenário nacional foi rico e evitou ao máximo copiar os cânones que faziam sucesso na Europa, mas, como se sucede a muito do bom rock feito por aqui, caiu no esquecimento. Bandas como Casa das Máquinas, Pão com Manteiga, Secos e Molhados, Quaterna Réquiem, Os Mutantes, Piri, O Terço e A Barca do Sol criaram álbuns que até hoje são referência no quesito originalidade.

Capa do disco Octopus (1972),
do Gentle Giant
As artes de capa são muito importantes no rock psicodélico e progressivo, elas precisam ser suficientemente descritivas em relação ao que está contido no álbum ou, por outro lado, deixarem o ouvinte curioso para saber o que vem. Costumam ser figuras cheias de cor, cenas surreais abusando de “várias geometrias” num mesmo encarte. Os trabalhos costumam ter pelo menos uma composição instrumental de longa duração (referência mais que óbvia à música clássica) sob a premissa de ser impossível fazer uma viagem sonora decente em curto espaço de tempo – definitivamente o rock progressivo não exige pressa alguma de seus ouvintes (a ideia de tornar as coisas mais velozes e agressivas firma-se no rock com muito mais tardar). Embora alguns vocalistas de progressivo tenham se notabilizado pelas performances, estatisticamente maior mérito recaiu sobre os músicos. Não à toa, as letras optam pela repetição, objetividade, entoadas com vagar e boa dicção. Num mesmo trabalho é possível identificar dezenas de sons diferentes: instrumentos, matizes, sintetizações, afinações, ruídos cotidianos, tudo serve aos propósitos da experimentação sem limites. Detalhes como harmonias incomuns, vocalizações, ecos, síncopas e equalizações propositalmente desiguais nas caixas de saída – que o diga Interstellar Overdrive, do Pink Floyd – tornam tudo ainda mais inebriante. Os sujeitos musicais são complexos e servem de base para solos gigantescos de quase todos os instrumentos.

Ainda existe uma boa quantidade de grupos fazendo música psicodélica e progressiva por aí, todos ainda muito calcados na proposta original e mantendo a qualidade que sempre caracterizou estes movimentos. Outras modalidades surgiram, focadas principalmente na necessidade de álbuns mais pesados, modernos e conceituais, e reveleram ao mundo bandas do naipe de Queensrÿche, Dream Theater, Ayreon e Symphony X. Pelas razões aqui expostas, seria polêmico, jamais absurdo, afirmar que o rock progressivo foi a maior bênção da música contemporânea. Mas a mesma Inglaterra, que radicalizou totalmente o blues elétrico que Waters havia trazido 10 anos antes criando sonoridades bem distintas entre si, ainda não estava satisfeita. A repressão aos grupos jovens fez aumentar ainda mais a rebeldia, e disso surgiu uma sonoridade totalmente única, agora acompanhada também por alguns jovens da Alemanha Ocidental, que buscava uma maior aproximação com o lado Oriental, desmembrado do país após a Segunda Guerra. Isso, no entanto, fica pro próximo capítulo...