terça-feira, 19 de julho de 2011

capítulo 6: verde é o rock, amarelo também







Cansa ouvir que rock não dá certo no Brasil. Tudo bem, a cultura nacional parece até não ser contada por muitos episódios que envolvam o rock, mas eles existem e são importantíssimos; ademais, tudo depende de quem conta. Tentarei, sem deturpar ou aumentar sua influência sobre a vida de nossos compatriotas, mostrar quanto o rock foi capaz de mudar o estado de coisas neste país. O rock revolucionou cada canto do mundo de forma particular – no Brasil, a revolução não apenas se fazia presente pelas vias da música, sempre se fez necessidade de resposta numa terra em que as mazelas políticas e sociais são mais antigas que você e eu. O ápice do rock nacional, não por coincidência, está na crítica aos costumes e no teor predominantemente político.

Por aqui foi preciso um tempo para que o rock ganhasse contornos de movimento autônomo, quase duas décadas para que uma geração respeitável de roqueiros aparecesse. Antes disso, o ano de 1955 fica marcado pelo primeiro registro do estilo, acredite se quiser, na voz da cantora e sambista Nora Ney que resolvera experimentar uma pegada rockabilly, gravando Rock Around the Clock, de Bill Halley & His Comets para a trilha sonora de um filme em versão brasileira. Sua contribuição para o rock brasileiro se resume ao pioneirismo e só: nunca mais gravou nada no estilo. Estava lançada uma geração que aproveitou a oportunidade de experimentar nos discos algumas faixas de um tal de rock’n roll que dava certo lá fora e poderia dar certo aqui também: Cauby Peixoto, lenda-viva da luxuosa música dos bares, gravou o primeiro rock em português, Rock’n Roll Copacabana, da autoria de Miguel Gustavo, compositor com faro de oportunidade, autor de jingles e da célebre marcha Pra Frente Brasil que embalaria a campanha do tri-mundial. A primeira experiência rentável veio com os irmãos Tony e Celly Campelo que estouraram nas rádios com a canção Estúpido Cupido, até hoje lembrada pela grande mídia. De fato, a postura de nossos primeiros rockstars, se é que podemos chamá-los assim, em nada faziam lembrar a evoluída cena europeia e estadunidense, embora sua inspiração compositora residisse nesses lugares.

O ano de 1965 é fundamental para as pretensões do estilo por aqui. Vamos aos fatos: a televisão e o rádio ainda são duas invenções de enorme influência no mundo inteiro, naquela época eram novidades e já gozavam de muito prestígio tanto do grande público quanto dos investidores. Dois programas são lançados simultaneamente na TV Excelsior e na TV Record: o Festival de Música Popular Brasileira (em conjunto com outras emissoras) e a Jovem Guarda. Cada um teve trajetória distinta do outro, opunham uma exibição de caráter técnico, rara iniciativa que aliava o grande público a uma atmosfera de intelectualidade e crítica, com um movimento estático e apolítico, nascido para que as pessoas comprassem discos e mais discos e idolatrassem refrões de fácil assimilação em frente à TV. A ditadura militar fora instaurada no fim do ano anterior com a deposição de João Goulart e muitas áreas ligadas à cultura estavam sobre frequente vigia do DOPS, órgão responsável pela fiscalização de materiais “subversivos” contra a moral e o sistema nacional instaurado. O festival apresentava um molde sadio de competição entre grandes compositores e intérpretes, mas essa aparente inocência seria derrubada por episódios curiosos nos anfiteatros e o levante daqueles artistas, expostos em cadeia nacional com audiências absolutas, contra o regime. Dali despontaram nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Baden Powell, Vinícius de Moraes, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Nara Leão, Elis Regina e tantos outros.

Roberto Carlos
Jovem Guarda era um programa sobre rock de conteúdo despretensioso e detestável. Despretensioso porque, enquanto a classe da música popular engatinhava seu corajoso manifesto político, os reis locais do iê-iê-iê fingiam que nada acontecia ou pelo menos não faziam a menor questão de levar a público, através de sua arte, nossa decadente situação. Detestável porque empurrou a nós, brasileiros de nascença, um padrão de hábitos e costumes que há séculos rege a família norte-americana. Roberto Carlos, membro daquele clube supimpa e posteriormente maior nome da música brasileira, teve a brilhante ideia de compor coisas do tipo “primeiro foi Suzy (...) com a história do Splish Splash (...) quero consertar meu Cadillac (...) bye! bye!”. Acreditem, isso vendeu muito e até hoje vende em pleno sul da linha do Equador. Sob a alegação consistente de que essa música não representava a alma do povo brasileiro, alguns representantes da música popular brasileira participaram da curiosa “passeata contra as guitarras elétricas”. Se, por um lado, manifesto inocente pela preservação da identidade nacional através da música, por outro um sutil aviso de que era possível criar rock nosso e não apenas copiar. O programa Jovem Guarda acabou tarde, em 1968.

O rock meramente imitativo ganhava sérios opositores dentro do próprio rock, sendo seu maior representante também a maior banda de rock nacional: Os Mutantes nasceram em São Paulo, bairro da Pompeia, no ano de 1966, resultando da fusão entre o exímio guitarrista Sérgio Dias, a doce e intrigante voz e postura de Rita Lee e a viagem inspiradora das composições de Arnaldo Baptista. Falavam de amor, humor, absurdos e deboche, usavam da batida latina e do experimentalismo mais sem noção possível – chegaram ao cúmulo de ligar guitarras em máquinas de costura, o som ficou primoroso! – para transmitir sua filosofia simples. A genialidade desse grupo jamais foi reconhecida como se deve, rumando para o triste fim de muitas outras cabeças brilhantes da música brasileira: serem mais reconhecidos lá fora que no próprio país de origem. Já naquela época existia uma concorrência desleal por fatias de mercado com gente bem menos talentosa e bem mais popular. Mundo afora eles são citados como referência de atitude e criatividade, principalmente após o nevoeiro da ditadura militar baixar no início dos anos 90 é que foi possível dimensionar o tamanho de sua influência. John Lennon, Kurt Cobain e outros do mesmo naipe assumiram admiração pelo grupo.

O endurecimento do regime militar fez com que a música popular e o rock’n roll brasileiros passassem a trocar figurinhas, seus ícones diziam praticamente as mesmas coisas, só que de maneiras diferentes. Um raro encontro ideológico que me coloca a pensar com seriedade em tanta gente da minha geração que aprendeu a segregar com o taxativo de posers quem simplesmente se nega a produzir as coisas que eles não gostam de ouvir, por mais que suas convicções sejam idênticas. Nos anos 70, os artistas que flertavam com ambos os movimentos demonstravam no fundo a sensação de inconformismo que sempre pontuou o verdadeiro rock. Secos & Molhados se apresentavam de maneira ousada e irreverente, com maquiagens e figurinos extravagantes causando um choque de ridículo numa sociedade militarizada e ultracatólica. Sob a liderança de Ney Matogrosso, faziam um rock progressivo, folclórico, teatral, vibrante e quebrador de recordes: 700.000 cópias vendidas do álbum debut, um show histórico no Maracanãzinho para mais de 120 mil pessoas (três quartos delas ficaram do lado de fora) e sucessivas aparições nas principais emissoras de televisão. Outros bons grupos de progressivo foram Casa das Máquinas, Pão com Manteiga, Quaterna Réquiem, Piri, O Terço, A Barca do Sol e outros que não gozaram de muita sorte na grande mídia.

Raul Seixas
Goste-se dele ou não, entenda-se ou não sua mensagem, acredite-se ou não que ele desejava transmitir uma mensagem, o enigmático e debochado Raul Seixas, pai do rock nacional, também despontava para os brasileiros na década de 70. Mestre da antítese e da metáfora – “atenção, eu sou a mosca, a grande mosca que perturba o seu sono (...) eu sou o tudo e o nada” –, defendia a música simples e objetiva para se aproximar do povo. Desta sua busca pelas sentenças curtas e por um vocabulário que jamais necessitou de enfeites para dizer a que vinha, Raul exerceu certo incômodo nas classes intelectuais. Seu figurino mais lembrava um mendigo misturado com Jesus Cristo, um messias urbano despenteado, óculos escuros e um violão em punho. Não resta dúvida de que suas canções eram rock, porém não traziam a complexidade musical que o gênero costuma exigir, Raul foi um dos poucos artistas que se fez respeitar pelo conteúdo ideológico bem mais que pelo aparato instrumental. Fez enorme sucesso entre os jovens, afinal não é todo dia que alguém aparece fazendo canções geniais em três ou quatro acordes fáceis de tocar e cantar.

O rock ganharia seu maior apelo junto ao público nos anos 80, geração que Nelson Motta rotulara de BRock, uma mistura entre rock e pop cantado em português que, se olhado pelo viés político, não pode ser desprezada, acostumaram o brasileiro ao padrão vocal-guitarra-baixo-bateria e isso facilitou indiretamente o trabalho de todas as bandas que mais tarde viriam a se instaurar com essa formação clássica. Paralamas do Sucesso, Skank, Jota Quest, Capital Inicial, Kid Abelha e várias outras bandas oriundas desse período ainda se mantêm na ativa com bastante aceitação dos jovens tanto porque souberam manter uma fórmula que deu certo e não incomodava tanto quanto poderia, quanto pela ausência de gente que, dentro desse mesmo gênero, dissesse algo mais, algo diferente, ácido e estimulante. Mérito deles que atingiram um difícil lugar de destaque no pedestal dos intocáveis da Rede Globo fazendo, goste-se ou não, rock’n roll. Grandes cabeças surgiram também no rock nacional oitentista, mas farei menção a duas que talvez representem o ápice dos versos-protesto: Cazuza e Renato Russo, lendários compositores, intérpretes magníficos, cantores medianos, homossexuais e aidéticos assumidos que lavaram ao conhecimento público temas-tabu, até hoje evitados nas conversas íntimas das famílias mais conservadoras.

Polêmica capa de I.N.R.I.(1987) da
banda mineira Sarcófago
Na contramão do BRock, o hard e o metal só existiram e resistiram no Brasil em seus primórdios graças ao investimento de alguns corajosos e um público apaixonado, todos loucos e dedicados na tarefa de manter o rock pesado na ativa. Muitos deles são heróis anônimos, figuras urbanas que tiveram de encerrar o gosto pela música em troca de um emprego burocrático. Da cena paulistana brotava um som cru e até certo ponto ingênuo, onde bandas com grande potencial e muita vontade de fazer história como Vírus, Centúrias, Salário Mínimo, Santuário, Anthares, Harppia e Korzus surgiram. Ainda em São Paulo, no ano de 1984, o selo brazuca Baratos Afins (lendária loja que figura vívida no coração da Galeria do Rock) lançou a coletânea SP Metal, um split de algumas dessas bandas. É fundamental ressaltar que o Rock in Rio não passava de um projeto especulativo e nem a Rede Globo havia comprado a ideia do metal pesado, tudo era muito mais difícil e as injustas alegações de plágio da matriz estrangeira sofrida por muitos desses músicos cai vergonhosamente por terra. Já no metal extremo, não resta dúvida de que as Minas Gerais foram seu grande polo no país com especial contribuição do selo Cogumelo Records; da terra do pão-de-queijo nasceram grupos como Sarcófago – cujo polêmico álbum de estreia I.N.R.I. (1987) é tido como um dos mais importantes do black metal mundial –, Sepultura – cujos álbuns Beneath the Remains (1989) e Chaos A.D. (1993) são referências obrigatórias dos gêneros extremos –, Witchhammer, Mutilator, Sextrash, Chakal e Holocausto, entre outros. Somos exportadores também de metal melódico e o pontapé inicial foi dado pelos paulistas do Angra com o debut Angels Cry (1993), uma combinação atraente de timbres sinfônicos (na verdade teclados), bons refrões, algumas alegações descaradas de influência direta da música clássica (não passavam de trechos copiados e colados) e o talento de André Matos, cuja voz limpa e agudos impressionantes, reza a lenda, quase o levaram ao posto de frontman do Iron Maiden.

O verdadeiro rock persiste no Brasil em suas mais diversas vertentes e, a julgar pelo estado de coisas, a situação de tantos países ainda amordaçados em termos culturais por governos totalitários, penso que o rock nacional cumpriu bem seu papel nas eras passadas. Infelizmente o que hoje se chama de rock por aqui (happy rock?!) não estimula os neurônios, não tira a pulga atrás da orelha, não cria sangue nos olhos de ninguém. Sobre estas "vertentes" dispenso meu comentário ou faço minhas, com ressalvas, as tão frequentes críticas do roqueiro Lobão.